VIDA INTRA-UTERINA, SONS E RELAXAMENTO

CAPITULO XIV

Dr Bernard Auriol

 

 



 

Tomás de Aquino dizia que a alma pensa mesmo antes do nascimento. Rank[1] afirma que toda a cura psicanalítica consiste em exorcizar o trau­matismo do nascimento. Alguns técnicos de hipnose demonstraram que às vezes é possível obter a revivência de lembranças muito antigas, que às vezes remontam até à época fetal. Os adeptos da cientologia vão mais longe: crêem que se possa regredir, através de determinadas técnicas, até hipoté­ticas "vidas anteriores"[2].

Feijoo demonstrou que se pode condicionar um feto utilizando o solo de contrabaixo de Pedro e o Lobo, ou a voz do pai. As seqüências sonoras são emitidas com grande intensidade, perto do abdômen materno[3], durante os últimos meses de gestação.

Muito antes disso, Tomatis já havia aventado a hipótese da audição fetal e do “imprinting” da criança pela voz materna, ouvida antes do nasci­mento. Ele construiu seu sistema baseado na idéia de que, como essa audição do feto ocorre dentro d'água, as freqüências captadas devem ser filtradas por essa progressão no meio líquido. Tal filtragem teria o efeito de enfra­quecer os graves e permitir a passagem dos harmônicos elevados da voz (superiores a 8.000 Hz). 0 "tratamento áudio psicofonológico" utiliza essa teoria, propondo ao paciente uma etapa "intra uterina" (sons acima de 8.000 Hz) e um "parto sônico"[4], que será seguido de uma reestruturação da vocalização e da verbalização.

Um outro argumento de Tomatis refere se ao "sinal do nome de Thomas". Pesquisa se assim: a criança, mantida sentada em uma mesa, tem à sua volta várias pessoas de ambos os sexos Quando chamada pelo nome, ela não se mexe, exceto quando é a mãe que chama. Nesse caso, ela se inclina para o lado da mãe como para ir ao seu encontro. Se a mãe está à frente, ela dobra se para a frente; se está atrás, ela cai de costas; se está à direita, inclina se para a direita, etc.[5] Entretanto, esse sinal é verificável apenas durante dez dias; depois disso ele desaparece. Tomatis dá a seguinte explicação: a audição intra uterina ocorre dentro d'água; até o décimo dia após o nascimento, o ouvido médio (caixa do tímpano) está ainda repleto de líquido, o que faz com que os sons agudos sejam favore­cidos, e que a voz da mãe seja ouvida mais ou menos como de hábito. Isso explicaria também a hipertonicidade observada nesse período: os agudos têm um efeito dinamogênico (demonstrado clinicamente pelos resul­tados constantes da audição de sons filtrados). Quando o ar enche o ouvido médio (graças à abertura da trompa de Eustáquio, concomitante às deglu­tições), a criança tem de enfrentar os sons graves, e constata se uma acen­tuada redução do tônus muscular.

Um dentista meu amigo, o Dr. Pinar, relatou me que várias de suas clientes, grávidas de mais de cinco meses, percebem regularmente movi­mentos fetais, quando ele "passa o motor" em um dente. Dificilmente se poderia dizer que o feto começa a mexer se devido ao “relaxamento” da mãe, pois receber esse tipo de tratamento raramente constitui um motivo de relaxamento. Ora, o motor de meu amigo dá aproximadamente 400.000 voltas por minuto, o que corresponde a uma freqüência próxima de 7.000 Hz. Som relativamente alto, próximo dos "sons filtrados" de Tomatis. Assim, seria preciso admitir que a voz materna chega ao feto principalmente por condução óssea, sendo que a coluna vertebral desempenharia mais ou menos o papel de um estetoscópio que conduziria o som da laringe à bacia. Esse som seria, então, filtrado pelo líquido amniótico.

Laënnec observou que a pleurisia dá à auscultação da voz um caráter particular, ligado à travessia de uma camada fina e trêmula de líquido pleural (voz de políchinelo ou egofonia)[6]. Por outro lado, há vinte anos Tomatis e seus alunos vêm obtendo efeitos inegáveis por meio dos sons filtrados, particularmente em indicações onde a psicanálise permite inferir uma perturbação das relações arcaicas, pré verbais, na mãe: autismo, epi­lepsia, depressão, etc. 0 "parto sônico" provoca de maneira quase cons­tante fenômenos emocionais do tipo “angústia de separação ou de aban­dono”, perda de felicidade, desolação, etc. 0 tratamento com ouvido ele­trônico traz, com o tempo, efeitos benéficos que se assemelham aos tra­tamentos terapêuticos concebidos por 0. Rank (cf. nota 1). Trata se de exor­cizar o traumatismo do nascimento, na medida em que esse termo tem um significado histórico para o indivíduo em questão[7]. Em todo caso, o conjun­to de ferimentos e de stress que ocorreram no nascimento e se sedimentaram conjuntamente em seus engrames parecem ser evocados em bloco, o que possibilita que sejam superados por meio dessa reatualização catártica (este ponto se aproxima das teses de Janov).

Um último argumento em favor da audição privilegiada dos agudos pelos fetos é fornecido pelo "Rebirth" (Capítulo XV), durante o qual numerosos indivíduos percebem agudos de freqüência muito alta. Existem, entretanto, argumentos sérios que sugerem que o feto ouve os graves; parece provável que ele ouça os ritmos do organismo materno: ritmo cardíaco, respiratório, da fala, do andar, dos gestos ... Esses ritmos são certamente registrados pelo labirinto, que se comprovou ser susceptível de reagir não somente aos movimentos periódicos muito lentos (infra sons) mas também aos sons muito graves até 200 Hz. A percepção dos ritmos é, em todo caso, evidente no bebê de três meses[8]. Por outro lado, está comprovado que no embrião a audição dos graves precede a dos agudos[9]. Este fato não invalida a tese de Tomatis; mas numerosos são os ruídos dentre os quais o feto terá de destacar a voz materna: borborigmas intestinais, murmúrio vesicular, batimentos cardíacos, barulho dos calcanhares durante o caminhar, vibrações sonoras transmitidas pelo assento durante locomoção em veículo a motor, etc. Demonstrou se até mesmo que o patinho antes do nascimento (e por que não o feto humano?) é capaz de fazer algumas tentativas de vocalização que lhe permitirão, mesmo quando chocado por uma máquina, reconhecer após o nascimento a chamada dos de sua espécie, diferenciando a dos sons de uma outra espécie. Ele não consegue fazer essa distinção se o tiverem tornado mudo no decorrer da maturação[10].

(cf. também nota 9).

Os trabalhos de J. Mehler[11] provam sem discussão que uma voz materna "a seco", sem corrente verbal, sem ritmo, não provoca reação de sucção no lactente. Demonstrou se anteriormente[12] que o bebê suga com mais freqüência e mais vigorosamente quando ouve a voz da mãe do que quando ouve a de uma outra mulher. J. Mehler depurou vozes maternas de suas baixas freqüências: essas vozes tornaram-se então ineficazes para aumentar a porcentagem de sucção dos bebês testados. Os autores reco­nhecem que é necessário interpretar com grande prudência este último resultado (de tipo negativo). De fato, a audição de sons filtrados (e dispõe­se de poucas informações sobre a natureza exata desta filtragem) não é fisiológica na época considerada (depois do nascimento). Seria possível até mesmo esperar a manifestação de um outro vetor, que seria o impulso para um tipo de comportamento intra-uterino: diminuição da respiração e da sucção[13].

Alguns autores, utilizando os ritmos graves captados pelo feto, obtêm um efeito de relaxamento imediato e de regressão. É, o caso de Duran­-Lopez[14], que emprega batimentos cardíacos associados ao balanço para favorecer uma técnica de sugestão verbal. No mesmo espírito, Feijoo utiliza sons muito graves (inferiores a 200 Hz) que ele faz pulsar de maneira monótona ou gira estereofonicamente ao redor do paciente, a fim de favo­recer a sugestibilidade e induzir a um estado próximo da hipnose[15]. Serve se deles também para relaxar a mulher grávida e permitir que ela se "pro­grame" para um parto consciente com sensações não dolorosas (auto sugestão pós hipnótica).

Benenzon[16] trata casos de autismo pesquisando os ruídos que marcaram a criança antes do seu nascimento e nos primeiros meses de vida. Esses sons gravados são tocados depois para o paciente, cujas reações são analisadas. Todo uni trabalho executado junto à família contribui para a eficácia do método.

0 campo de estudo dos sons oferece grandes perspectivas. Utilizam se determinadas músicas para acompanhar o Treinamento Autógeno (Gabai e Jost): estabelece se um programa de audições musicais distribuindo se as obras de uma maneira muito personalizada, em função da evolução do paciente (musicoterapia de E. Lecourt, Sra. Verdeau-Pailhès, Sr. e Sra., Guilhot, etc.). Essas técnicas requerem uma grande cultura musical da parte dos terapeutas, que geralmente trabalham em equipe. Associa se freqüentemente à audição o movimento (expressão corporal) ou a expressão musical criadora[17] (cf. também nota 18). Uma utilização específica da música tam­bém é feita nas técnicas de relaxamento que usam simultaneamente os íons negativos, a luz difusa de cor calmante (azul), as músicas suaves e o “terpnos logos". Tal excesso de instrumentos não parece trazer vantagens proporcionais ao investimento (em relação às técnicas menos sofisticadas de relaxamento); a ação favorável de cada um dos recursos parece somar se de maneira parcial, sem sinergia potencializadora[18].

No final do Capítulo XV (Rebirth) há uma alusão à técnica hindu de Musicoterapia, difundida na França por R. Toupotte.

 

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Psychosonique Yogathérapie Psychanalyse & Psychothérapie Dynamique des groupes Eléments Personnels

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6 Décembre 2002



[1] 0. RANK, Le traumatisme de la naissance, Payot P.B.P., 121, 1924 1976.

[2] Eles utilizam, entre outras, a reação eletrodérmica, para incitar o paciente a se deixar guiar pelas emoções, em sua fala.

[3] J. FEIJOO, Comunicação no 1er Congrès Français de Musicolhérapie, nov. 1977, Paris.

[4] Trata se de uma desfiltragem progressiva da voz materna.

[5] A. THOMAS e col., Psychoaffectivité des premiers mois du nourrisson, Masson, 1959.

[6] A. COIFFIER, Précis d'oscultation, Baillière et Fils, 1902, p. 19.

[7] F. LEBOYER, Pour une naissance sans violence, Seuil, 1974; Shantala, un art traditíonnel, le massage des enfants, Seuil, 1976.

[8] L. DEMANY e col. demonstraram que os bebês de três meses são capazes de efetuar uma discriminação de ritmos. Cf. Nature, 1977, 266, 718, e também La recherche, 1977, n.°80, p. 664.

[9] G. GOTTLIEB, "Le comportement de l'embryon", in La Recherche, out. 1976. 71, vol. 7, pp. 833 e s.

[10] G. GOTTLIEB, "C.R. d'expérimentation de dévocalisation des canards Mallards avant la naissance", in J. Comp. Physiol. Psychol., 1975, 89, 387, 675 e 899 (citado em 9).

[11] J.MEHLER e col., "La reconnaissance de la voix maternelle par le nourrisson", in La Recherche, set. 1976, 70, pp. 786 e s.

[12] M. MILES e col., citados por Mehler (11), Nature, 1976, 259, 39.

[13] Se a hipótese de Tomatis sobre a audição fetal da voz materna fosse comprovada. Nesse caso, os ritmos e os graves seriam captados pelo labirinto, e os agudos pela cóclea. (TOMATIS, Congrès de Musicothérapie, Paris, nov. 1977). Pessoalmente, penso que é necessário admitir, com Tomatis, que o feto ouve a voz da mãe, e refutar a idéia de Feijoo, segundo a qual ele ouviria apenas os ruídos maternos (intestinais, cardíacos, etc.) e somente as vozes graves das pes­soas ao redor, e portanto sobretudo a voz do pai ... Entretanto o conjunto dos trabalhos, apresentados aqui de maneira muito resumida, me faz acreditar que o feto ouve toda a escala das freqüências. Nessas condições, como explicar o efeito clínico da voz materna filtrada? Há pelo menos duas hipóteses:

a. Essa audição permite reforçar a relação verbal não semântica entre a criança e a mãe. No caso de "double bound", por exemplo, isto poderia ser extrema­mente terapêutico, aparentemente.

b. Acredito que o feto é invadido por todos os sons que o cercam, e precisa mais aprender a se defender deles do que a escutá los. 0 único som freqüente, permanente, homogênea a si mesmo é a voz materna. A condução óssea per­mite que os agudos dessa voz sejam transmitidos ao feto, enquanto todos os outros barulhos e vozes são filtrados desses sons agudos pela parede abdominal e pelas diversas camadas de tecidos. Assim, o feto aprenderia a captar os agudos, o timbre da voz, pela escuta privilegiada dos hormônicos maternos. Isto im­plicaria que uma voz que faz vibrar a coluna vertebral seja melhor per­cebida pelo feto e que, quanto mais a voz materna for rica em harmônicos, tanto mais o feto se enriquece a nível auditivo. Isto ofereceria largas perspec­tivas para a profilaxia da surdez do lactente e para diversos distúrbios mentais (por exemplo: o autismo infantil).

[14] DURAN LOPES, "Tecnica del latido cardiaco", ler Congrès Mondial de Sophro­logie, 1970  C.R. in Sof. Med., 1976, t. III, pp. 255 265.

[15] Com isso ele retoma, dando lhes maior sofisticação, as antigas técnicas "não­verbais" de hipnose (Gong).

[16] R. BENENZON, "La musicothérapie dans le cadre de l’autisme infantile", in Annales de Psychothérapie Musicothérapie, 1974 (supplément au n.° 9), t. V, pp. 51-60.

[17] GUILHOT e col., La musicothérapie et les méthodes nouvelles d'association des techniques, E.S.F., 1973.

[18] G. DUCOURNEAU, Introdução à musicoterapia. S. Paulo, Ed. Manole, 1984

(c/ bibliografia).